Num gesto
rápido eu a virei para cima e lhe dei duas bofetadas, uma em cada lado do rosto
e o som pareceu ecoar por toda a vizinhança. E, antes que ela pudesse gritar
alguma frase indignada, eu tapei sua boca com uma das mãos. E estuprei minha
mulher enquanto encarava seu olhar chocado ou enquanto ouvia seu choro baixinho
quando a virei de bruços.
De certa forma, eu acho isso muito irônico:
estuprar a própria esposa. No mundo em que vivemos, marido e mulher têm uma
determinada obrigação ao coito, e é esse acordo silencioso que impede coisas
assim de acontecerem. A culpa foi toda dela, e até hoje eu não acredito em como
ela pôde me olhar daquela maneira.
Quando eu finalmente me cansei, percebi que
não podia deixar o estupro por isso mesmo. Aquela cadela provavelmente ligaria
para a polícia assim que eu fechasse os olhos, e então ela é que ia me foder.
Eu tinha que matá-la. Não por algum tipo de vingança, ou porque minha raiva
ainda não estivesse amainada, mas pela minha própria sobrevivência. Então,
aproveitei que ela estava meio que paralisada na cama, me levantei devagar e
fui em direção ao guarda-roupa, sem nunca tirar os olhos dela. Peguei
rapidamente a arma no cofre escondido por trás da parede do guarda-roupa.
Ao voltar para a cama, ela já estava
encarando o teto, as lágrimas ainda escorrendo por seu rosto. Eu a olhei
atentamente, e seu olhar tinha um quê de contentamento; mas, quando o revólver
apareceu, ele passou a exibir um profundo terror.
- Não, Edgar, por favor, não. Eu nunca mais
aborreço você, eu prometo, mas por favor...
Eu não lhe dei a menor atenção. Apenas
atirei – duas barulhentas vezes – e fiquei encarando a bagunça vermelha que deu
lugar a seu rosto. Eu estava deleitado com aquela imagem, quando:
- Pai?
Puta que pariu. Merda. Caralho. Por que eu
fui ter filhos, puta merda?!
Eu estava de saco tão cheio, Deus do céu. E
quando eu achava que ele tinha esvaziado um pouco depois de estuprar e matar a
imbecil da minha mulher, eu lembrava que ainda tinha aqueles gêmeos idiotas.
Foi por isso que eu matei meus filhos
também. Primeiro por culpa da minha mulher, que me negou uma trepada – podia
ser uma rapidinha! – e depois Minerva, com sua irritante dificuldade de dormir,
com suas orações antes de dormir e seu namoradinho pequeno demais para a idade.
Eu na verdade não me lembro muito bem do
que aconteceu depois disso. Lembro que levei Minerva de volta para o quarto,
impedindo-a de olhar por sobre o ombro, e a pedi para esperar ali quietinha,
sem acordar Aristóteles. Lembro que fui na cozinha pegar uma faca e o resto é
um borrão, acho que entrei num tipo de transe até acordar com o miado do gato.
Acho que me esqueci de mencionar, mas eu o matei também. Àquela altura, eu
estava muito concentrado em eliminar todas as testemunhas do meu crime. E, às
vezes, penso que posso ter feito aquilo por remorso, tentando apagar minha
culpa, mas eu não me lembro de sentir arrependimento por um só momento, e mesmo
agora, eu talvez fizesse tudo de novo.
Eu realmente estava de saco cheio.
E estava tão aliviado por tudo ter
finalmente chegado ao fim que até me esqueci dos vizinhos. Ou do vizinho. E só fui me lembrar dele
quando ouvi as sirenes do carro de polícia; e só fui reparar que estava banhado
em sangue quando os policiais arregalaram os olhos ao me ver. Me algemaram na
hora e não hesitaram ante meus gritos de protesto. Em meu último momento de
lucidez, vi o Médico Bonitão me acenando uma última vez enquanto eu era levado
para o carro. Muito depois, eu soube que ele sofreu um infarto fulminante
enquanto fazia compras no supermercado. Bem feito.
E esse foi o caso de assassinato de Edgar
Sem Sobrenome. Foi a primeira e única vez. Eu ainda sinto uma comichão nas mãos
às vezes, mas desde que fui preso nunca me envolvi em uma briga sequer. E, na
verdade, sou um querido por aqui.
A tendência é que estupradores sejam
estuprados na prisão. E que aqueles que matam crianças sejam espancados todas
as noites. Mas eu simplesmente não sei o que me aconteceu. Quando você chega na
prisão, ou eles gostam de você ou não. (E na verdade há muita competição entre
todos, então isso não vale lá de muita coisa). Se eles gostarem, você conseguiu
um tipo de grande família. Se não, bem vindo ao Inferno.
Pra minha sorte, eles gostaram de mim. E eu
até consegui um amigo: Pig. Ele é tão velho quanto eu e um bom camarada, conhece
as mesmas músicas, os mesmos filmes e os mesmos programas de televisão, então
nossas piadas são seguidas de concordância e boas risadas, o que é muito
confortável até nos lembrarmos de onde estamos. Eu não sei seu verdadeiro nome
e também não sei por que ele está aqui. Perguntei uma vez, e ele só me
respondeu que o passado é passado, e deve continuar lá. Então eu não insisti, e
na verdade isso nunca foi muito importante, já que ele não tentou me matar ou
me espancar, então imagino que ele seja apenas como eu. Um dia simplesmente
amanheceu bonito, e bam!
Neste exato momento eu não faço a menor
ideia de onde ele está. Eu me lembro de um dor lancinante e de ele gritar o meu
nome. Depois só o chão de nossa cela, que é onde eu comecei a contar essa
história. Eu me lembro de um cara novo também, um verdadeiro invasor; ele
chegou há uma semana ou há um ano, não sei mais. É um cara durão, nunca
conversou conosco por mais que tentássemos, mas há noite eu sempre o escutava
resmungando contra a escuridão. E me lembro de um plano de fuga que todos nós
tínhamos feito.
Mas agora eu não tenho mais muita certeza
sobre nada. A única coisa que me importa no mundo é chão sujo da nossa cela –
como eu posso me deitar nessa imundície para fazer abdominais todos os dias? –
e o som constante das goteiras ao meu lado.
Na verdade eu nem sinto mais a vida dentro
de mim. Percebo que pareço estar flutuando e me vejo caído no chão da cela –
que imundície! - , uma poça vermelha e viscosa ao redor de minha cabeça. E
ainda assim, um leve sorriso permanente nos lábios, porque antes de tudo, me
lembrei de minha mulher – seu nome era Ana, agora consigo ouvir – e sua
expressão de horror antes de morrer e de como ela nunca esteve tão linda pra
mim.
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