domingo, 4 de maio de 2014

[Rabiscos] Confissões de uma cela de prisão (Parte 2)

 (Parte 1)  
 Era uma daquelas manhãs perfeitas de inverno; o sol brilhava em seu lugar mas não nos condenava com seu fogo infernal, e uma boa blusa de lã era bem-vinda enquanto se tomava um café recém passado na varanda. Eu havia acordado com uma dor de cabeça dos diabos mas decidi ignorá-la apenas em função daquele belíssimo dia.
   Então eu estava sentado na varanda, e foi aí que eu vi minha esposa – com o tempo, decidi que esquecer seu nome era melhor – conversando com nosso vizinho, Juan Hernadéz, me lembro bem daquele filho da puta: era provavelmente mais velho que nós mas não aparentava ter mais que trinta anos, sua pele tinha um bronzeado saudável e natural, ele era médico – pediatra! – e tinha um sorriso incrível que o beneficiaria muito bem se ele resolvesse se tornar um pedófilo. Minha esposa o adorava, e todas as manhãs eu era obrigado a sentar na minha varanda e observar os dois rindo de algum comentário tolo, com os dedos finos de minha esposa sempre pousados sobre seus ombros, até o momento em que ele subitamente olharia na minha direção e me concebesse um aceno amigável – e aí, cara! Foi ótimo comer sua esposa ontem, espero que você também tenha gostado – e eu retribuiria, por causa da porra da política de boa vizinhança – um dia nossa casa poderia pegar fogo, um dia talvez precisássemos de um babá ou de um pouco de açúcar. Naquele dia eu não acenei de volta e essa foi sua deixa para beijar o rosto de minha mulher – muito próximo a seus lábios – e voltar para seu gramado estupendamente mais verde que o meu.

   Veja bem: eu nunca, nunca, nunca pensei que minha esposa estivesse me traindo. Mas quando eu via aquele cara, aquele modelo de Apolo latino-americano, era essa a impressão que eu tinha, e por um breve momento minha mente criava uma cena onde os dois estavam trepando naquele gramado até minha mulher gozar e eu ouvir aquela risada esquisita que ela soltava nesse momento. E isso me fazia ter vontade de matá-lo.
   E eu permaneci na varanda, imaginando as maneiras com que um vizinho pode matar o outro sem levantar suspeitas, quando minha mulher voltou em minha direção e eu imaginei que aquela não era a expressão que ela mostrava um minuto atrás para o seu precioso pediatra.
   - O que foi que você fez? – ela disse quando chegou perto o suficiente. E em um minuto – puf! – aquela puta estragou a minha bela manhã e o gole de café que eu tomei para não responder subitamente ganhou um gosto amargo demais.
   - Mas que droga, Ed, por que você nunca consegue ser simpático? Por que sempre tem que encarar as pessoas com essa expressão horrível, como se tivesse uma grande sombra negra pairando sobre a sua alma? Ah, pobrezinho do Edgar, sem pré tocando nesses bares, sempre...
   Um zumbido tomou conta de meus ouvidos e eu apenas fiquei olhando para ela até me entediar. Quando ela decidia que era hora de falar, ela levava isso muito a sério. Então:
   - Será que dá pra calar a porra dessa boca? – eu simplesmente disse, e de uma forma tão calma que me surpreendeu, porque eu estava fervendo por dentro. E ela ficou surpresa também, mas não pela minha calma, e sim porque nunca, em todos aqueles anos de casamento, por mais que eu bebesse, por mais que gritasse e por mais que ela jogasse todos os meus defeitos bem ali na minha cara, eu nunca mandei a minha esposa calar a boca.
   Eu realmente estava de saco cheio.
   E fiquei mais bravo ainda quando ela me lançou um olhar indignado e entrou em casa. Ou quando as crianças acordaram e pediram café na cama, porque estava frio demais para seus pezinhos delicados pisarem no chão por um minuto. Ou quando ela me obrigou a fazer o chocolate quente, e arrumar todo o café, digno de um domingo numa família quase abastada o suficiente para saber o significado dessa palavra, em duas bandejas e levá-las sozinho escada acima. Ou quando eu me desequilibrei por causa da porra do gato que descia a escada e derrubei chocolate quente na minha camisa. Ou quando as crianças – Minerva e Aristóteles, me lembro desses nomes ridículos que minha mulher escolheu para nossos filhos e eu concordei porque simplesmente não tinha escolha - começaram a gritar que o café estava demorando.
   E eu poderia ficar aqui por ainda muito tempo listando todos os acontecimentos daquele dia que me levaram à irritabilidade máxima, mas vou parar por aqui apenas para você ter uma ideia. Me lembro de ter pensado que ainda não eram nove horas da manhã.
   Às cinco horas, minha mulher não tinha falado comigo novamente – ela realmente calou a porra da boca – e meu empresário me ligou dizendo que o show daquela noite tinha sido cancelado. Ótimo, a última coisa que eu precisava era de um bando de desconhecidos bebendo e conversando enquanto eu tocava num palco feito um retardado. E, ao contrário da mãe, os gêmeos não pararam de me encher um minuto do dia.
   Às oito nós jantamos e o peito de frango acabou esfriando, porque Minerva quis fazer uma oração antes de começarmos. (Na realidade, eu e minha mulher éramos ateus, mas Minerva conheceu um garotinho na escola que vinha de uma família bem devota e, como um verdadeiro Indiana Jones, ela buscava o seu amor indo com ele à igreja todos os domingos).
   Depois do jantar, as crianças quiseram assistir Procurando Nemo e acabaram dormindo na cena em que o pai do Nemo conhece aquela maluca. É claro que eu é que tive que levá-los para a cama. Quando eu voltei, minha mulher não estava mais na sala e eu decidi ler um pouco; eu estava lendo A Revolução dos Bichos pela milésima vez e lembro que parei na parte do sumiço de Bola de Neve, ou algo próximo disso.
   Eu me cansei e finalmente fui me deitar. O relógio marcava 22:38.
   Como um marido cansado e tolo, fui buscar o amor da minha mulher, que eu imaginava muito merecido depois daquele dia dos diabos. Eu e deitei ao seu lado e ela estava virada de costas para mim, mas comecei a beijar o alto de sua cabeça, descendo até a nuca e acariciando um de seus seios. Ela ficou aproveitando aquilo por um minuto e meio,acho, mas logo me afastou com um empurrão.
   - Ora, Ed, se eu não posso abrir a minha boca para falar, não vou fazê-lo pra você meter o seu pau nela – ela disse sem nem se virar para me olhar.
   Foi nesse momento que aquilo que estava borbulhando dentro de mim o dia todo finalmente escorreu da panela [...].

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