sábado, 3 de maio de 2014

[Rabiscos] Confissões de uma cela de prisão (Parte 1)

 
 Ah, passado. Deveria ser substantivo feminino, essa vadia traiçoeira. E quiséramos nós, queridos mortais, jogá-lo para longe de nossas memórias – e nossos corpos! – como fazemos com nossas mulheres. Quiséramos nós largá-lo no fundo de uma gaveta para não encará-lo mais assim como fazemos com aquelas malcheirosas (ou será que não?) roupas de baixo. No entanto, como qualquer vadia que se preze, ele nos persegue, agarra-se a nossos tornozelos retardando nossos passos, jogam seus véus em nossas mentes nublando nossa razão. E o único lugar onde podemos largá-lo é numa roda de conversa no almoço de família, no bar com os amigos.

   Na prisão.
   Vocês podem não acreditar, mas a prisão tem as melhores rodas de conversa que eu já vi. Sem hipocrisia: se as pessoas não tem algo decente para dizer, simplesmente mergulhamos no seu adorável silêncio até que sua mente consiga alcançar algo. E quando o mar do silêncio seca, é lá que largamos nossas vadias, todas as histórias do passado, todos os desprezos e saudades. É lá que largamos nossos crimes.
   Mas como essa é uma situação incomum e eu não sei mais se estou mesmo na prisão ou na boca do Inferno, vou começar do começo.
   Meu nome é Edgar Sem Sobrenome. Em algum momento de minha jornada eu apenas o esqueci e isso deixou de ser importante. Eu estou preso há mais ou menos quatro anos, porque matei minha mulher e meus dois filhos. A primeira eu estuprei até meu pau estar cansado demais para gozar e depois dei um tiro bem na sua cara, não antes de memorizar bem a expressão em seu rosto; ela nunca esteve mais linda pra mim, se quer mesmo saber. Bom, eu só tinha uma bala no velho revólver do meu pai, então tive que improvisar e matei o resto da farinha com uma faca que encontrei na cozinha. A faca estava meio cega, então foi um processo demorado e eu tive que ficar ouvindo suas vozinhas gritantes. Se não fosse por isso, eu teria conseguido fugir, aliás.
   Por que eu fiz isso? Porque eu estava de saco cheio. Ponto. Não há nenhuma razão psicológica escondida por trás de tudo, nenhum trauma de infância, nenhum parafuso solto, nenhuma maldade embutida nisso tudo. Eu só estava de saco cheio. E talvez tenha sido uma atitude meio radical, mas entramos na questão da nossa amiga vadia de novo. Acabado e enterrado.
   Na verdade eu tive uma vida medianamente ótima até surtar. Eu tinha uma mulher, e apesar de todos os homens olharem para ela na rua, era eu quem via suas pernas abertas à noite. Eu tinha filhos e, apesar de serem filhos, eles eram filhos; tenho certeza de que você entende o que eu quero dizer. E eu não era um fracassado: toco saxofone e fui um grande nome do jazz – ou tão grande quanto se pode ser hoje em dia.
   Claro que eu não fui nenhum santo. Ninguém é.
   Houve dias em que cheguei mais bêbado que Bukowski no meio de um bloqueio criativo; eu gostava de beber, isso fazia com que eu esquecesse de minhas tristezas de classe média por um tempo, mas eu parei depois que fui preso e não porque aqui não há bebida, mas simplesmente perdeu o sentido.
   Eu tive uma amante também. Helena. Nome lindo, não? Às vezes eu o repetia em voz alta no meio da nossa cozinha escura só pra ouvir esse som. Isso não significa que eu a amava, e muito pelo contrário. Helena e eu passamos bons momentos juntos, mas pra mim ela era só um corpinho bonito para quando eu ficasse muito cansado de ver o da minha mulher. Além de tudo, seus olhos sempre me perturbaram: eram lindos olhos azuis, sim, e me faziam lembrar de Benjamin Button e sua Daisy, mas eu lhe digo uma coisa: se havia algo naqueles olhos azuis, era a morte em sua forma mais bonita e assustadora. Querida, às vezes eu olhava para aqueles olhos azuis depois de terminarmos o sexo e a vontade que eu tinha era se socar o rosto de Helena até ele se transformar numa massa vermelha e disforme, arrancar aqueles dois lagos do meio dessa massa e jogá-los tão longe que eu não pudesse me lembrar deles. Eu sempre imaginei que deveria haver algum trauma por trás daqueles olhos, mas nunca tive coragem de perguntar.
   No fim, Helena se casou com um publicitário bonitão. Ela me mandou uma carta um dia antes do casamento dizendo que nosso relacionamento tinha acabado. Eu nunca entendi porque ela chamou o que nós tínhamos de relacionamento ou como ela conseguiu manter nossos encontros longe dos olhos do seu então namorado e na semana do casamento ser moralista o suficiente para me dar um pé-na-bunda – não que eu tenha me importado. Mas sempre me perguntei se seu marido via os mesmos olhos azuis que eu.
   O verdadeiro devaneio é aquilo que chamamos de vida – como diria Pig. Mas, de qualquer forma, essa história não é sobre Helena ou sobre seus seios incríveis, que na verdade compensavam na maioria das vezes seus olhos perturbadores. Essa história é sobre o velho Edgar e sobre como um dia ele perdeu a cabeça de verdade. Ou quase isso: como eu disse, não sei mais onde estou ou o que sou e só me deu vontade de contar uma história.
   Eu talvez tenha causado a impressão errada, então aí vai um fato que você pode confirmar com todos os números da agenda de Edgar S.S.: eu não sou um cara violento, nunca fui. Mas, como diria Pig, somos o que pensamos. E eu sempre pensei muito em violência. Sempre enforquei os mendigos da minha rua com as mãos molhadas de sua birita. Sempre esfaqueei aquelas prostitutas que ficavam em frente ao clube de jazz uma por uma. Sempre estuprei as garçonetes incríveis que trabalhavam lá. Em meus pensamentos, eu sou o cara mais violento que já conheci. E olha que estou preso.
   Na condição de artista, era me permitido beber, fumar e gritar de vez em quando; eles simplesmente olhariam compadecidos para mim e diriam que era minha mente artística em crise. Certo. Mas, na realidade, eu só tinha machucado uma pessoa antes de matá-los, e foi sem querer. Eu estava andando numa rua movimentada, falando ao celular com minha esposa, numa briga ridícula de marido e mulher, e num gesto exagerado e raivoso acabei acertando em cheio um homem apressado que passava muito próximo de mim. Eu pedi milhões de desculpas e me ofereci para levá-lo a um hospital, onde poderiam fazer um belo curativo, mas a única resposta que ele me deu foi um olhar indignado. Gente da cidade grande.
   Recapitulando, eu nunca havia machucado alguém intencionalmente até aquele dia.

   Um dia que ironicamente começou muito bem. Como naqueles filmes de terror, onde nos primeiros minutos todos são amigos e vivem felizes, até que a primeira burrice da loira gostosa os leva ao inevitável fim com o sádico assassino vendo seu sangue jovem escorrer como esgoto numa vala.

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