Segunda-feira
– 02:00.O homem à sua frente lhe sorria estranhamente. Aliás, todos ali eram
estranhos. Esperava que, àquela hora da noite, não houvesse ninguém no trem
além dele, mas, ao contrário disso, havia pelo menos dez pessoas, todas o
olhando com curiosidade, quase com uma idolatria absurda. Uma obsessão medonha.
Supôs que a maioria fosse da alta sociedade – pessoas da alta sociedade que
andavam de trem, é claaro – porque estavam muito bem vestidos, com jóias e
todas as baboseiras de gente rica. Gostaria que não tivesse ficado no
escritório até tarde. Seu estômago roncou de leve e ele o pressionou com as
mãos.
- Está com
fome? – sorriu o homem à sua frente, lhe estendendo um pacote de biscoitos
salgados que não estavam ali um segundo antes.
- Não,
obrigado. Já comi no trabalho – seu estômago roncou mais uma vez e o sorriso do
homem tornou-se cínico. Mas não desapareceu.
Nem sabia
que horas eram. Ficara sozinho no escritório, enquanto todos iam para suas
casas comer um bom prato de comida, menos ele. Malditos chefes!, sempre querem
um relatório pronto em cinco minutos. Ele ficou na frente do computador o dia
todo, vendo seus colegas deixarem o local e acabou por adormecer sem perceber.
Quando acordou o céu parecia breu; não olhou que horas eram, apenas pegou suas
coisas e saiu antes que ficasse trancado ali até o dia seguinte. Isso tudo sem
terminar o relatório, claro.
Quando
chegou à estação o lugar estava deserto, mas o trem chegou rápido. Por isso
ficou surpreso quando viu todas aquelas pessoas bem vestidas olhando-o com
surpresa. Parecia que não viam vivalma há séculos.
- Posso
pedir uma gentileza? – era o homem de novo. Estava inclinado para falar com ele
e ficava olhando para os outros no trem, como se não quisesse que eles os ouvissem.
Mas era claro para qualquer um que todos os olhos estavam voltados para os
dois. Olhos e ouvidos.
- Farei o
que puder – disse.
- Bem, eu
preciso que leve uma coisa para mim quando descer na sua estação – quando o
homem disse isso, ele percebeu que o trem não parou nem uma vez sequer. Ficou
preocupado; talvez tivesse cochilado e perdido sua parada, agora estava indo
para um lugar completamente estranho e longe de sua geladeira, longe de uma
pizzaria ou uma cantina italiana.
O homem
mal esperou que ele acenasse com a cabeça; foi logo dizendo “ótimo, ótimo, é
bom ver pessoas gentis em dias como esse” e mais outras bobagens sobre como a
sociedade precisava se unir mais, que haviam muitas mortes, muitas almas
estavam perdidas.E, assim, foi se abaixando para alcançar uma mala sob o banco
onde estava sentado. Quando se abaixou o suficiente para que sua nuca ficasse
exposta, ele quase enfartou ali mesmo. Por todos os diabos, tinha um buraco na cabeça do homem. Um buraco
grande. Enorme. Não era para ele estar falando com um homem que tinha um buraco
na cabeça; uma pessoa assim deveria estar morta há muito.
Pela
primeira vez, olhou ao seu redor e percebeu as outras pessoas que o olhavam.
Uma mulher tinha uma bala no lugar do olho direito e sorria maliciosamente;
outro homem tinha uma flecha pequena atravessada na garganta; uma garotinha
tinha uma faca no meio da barriga. Todos os passageiros tinham alguma
deformidade que deveria tê-los matado na hora, praticamente.
- Ah, meu
Deus. Cacete, cacete, o que está acontecendo nessa merda?!
O homem
que conversava com ele ergueu a cabeça; nas mãos tinha um chapéu coco cinza de
muito bom gosto e completamente ensangüentado. Pareceu desconcertado ao vê-lo
ali, de pé, e com os olhos a ponto de saltar das órbitas.
- Oh, que
coisa! – exclamou como se tivesse batido o dedão do pé num móvel. Claro, estar
num trem cheio de gente morta com um cara aterrorizado na sua frente deveria
ser muito normal pra algumas pessoas. Aham.
Atrás de
si, ouviu o som de palmas e, quando olhou, viu que era a mulher com a bala no
olho. Ela continuava sorrindo para ele e batendo palmas lentamente, zombando,
mas ele não sabia dizer se a zombaria se dirigia a ele próprio ou ao homem com
o chapéu.
-
Parabéns, Monroe. Estragou tudo novamente. Incrível como as pessoas mais
idiotas são as que mais têm oportunidade, não? E agora, trilhos ou trem? – ela
parou de bater palmas e começou a bater o dedo indicador no queixo, fingindo
pensar. Imaginou que fosse uma mulher estonteante quando viva, mas agora a bala
que substituía o olho a deixava monstruosa.
- Hum, por
que está me olhando assim? Sabe, eu também não gosto desse meu olho. Pergunte
ao Monroe como foi que ganhei, ele se divertiu na ocasião.
Finalmente
lhe caiu a ficha de que estava num trem com gente morta! Precisava sair dali;
precisava sair dali naquele instante.
Começou a
andar pelo trem desesperado, quase sem consciência de que a máquina continuava
em movimento, ele não poderia sair dali. Ficaria preso pela eternidade afora
com aquelas pessoas terríveis. Sem geladeira, sem pizza, sem comida italiana.
Sem voz, porque berrou quando uma mulher entrou na sua frente; sua pele estava
cinza de podridão e veias azuis saltavam de seu rosto que um dia fora delicado.
Quando olhou ao redor percebeu que várias outras pessoas... Espera, seriam
pessoas, zumbis ou pessoas mortas? Ah, meu Deus, meu Deus, já estava começando
a delirar, a soar frio, a respirar pesadamente. Sentia o coração saltar pela
boca. Queria gritar, mas não saia nenhum som.
Gritou. O
escritório estava um breu e tinha um papel colado em sua bochecha, com baba por
todo lado de sua mesa. Céus, que horas deveria ser? Espera, ele estava
dormindo?! No escritório? E sem terminar o relatório, Deus do Céu. Não
importava; seu estômago roncava e tudo o que queria era ir pra casa. Uma
geladeira, uma pizzaria ou uma cantina italiana. Os trens provavelmente tinham
parado de funcionar; pela cor do céu, deveria ser pelo menos meia noite. Pegou
suas coisas e correu porta afora, pensando no sonho engraçado que acabara de
ter.
Dizem que,
se você for a qualquer estação de trem por volta das 02:30h, poderá encontrar o
corpo do que um dia fora Benjamim Jenkes. Seu rosto estará deformado e os
braços e pernas num ângulo completamente impossível. Mas seus olhos estarão
abertos, encarando o breu que estará o céu. Se encontrá-lo, significa que ele
te encontrou também. Se assim for, diga um adeus antecipado às suas noites de
sono; ele irá sugá-las como alguém suga um milk-shake de chocolate. Tome
cuidado com o espaço embaixo da cama e os lençóis brancos demais. Fique longe
de espelhos, acidentes de carro e qualquer outra coisa que envolva morte. Ele
estará lá. Vai enlouquecer você, fazer você gritar, escrever coisas nas paredes
do quarto. Vai fazer sua alma se esvair até que você seja apenas alguma coisa
desimportante que está ocupando espaço demais no mundo. Ele vai ficar lá até
você dormir no trabalho e decidir pegar um trem.
Uau...arrasou no conto hein?
ResponderExcluirVocê tem um domínio muito grande com as palavras,me envolvi do começo ao fim do post...Parabéns!
Abraço!
Bruno
http://oexploradorcultural.blogspot.com