O Escritor
Sobre a escrivaninha, a folha em branco
encara; na cama, as linhas do caderno encaram; na mesa, a luz do computador
encara. E o escritor encara de volta. José Saramago uma vez disse que “todos
somos escritores, mas alguns escrevem e outros não”; ou foi algo com o mesmo
sentido, se forem perdoadas as aspas. Ah!, Saramago. Quem dera ter sua
genialidade, ou melhor, sua ingenuidade. Se todos são escritores, então o
próprio do pobre escritor também não o é; queria ser, mas tudo o que faz é
encarar a folha em branco, as linhas dos cadernos, a luz do computador, até
seus olhos cansarem, até o café esfriar, até o cigarro apagar, até a frustração
esgotar.
Feliz aquele que não escreve. Sim, que não
se enganem por todos os escritores que se libertam pelas palavras, ou que dizem
se libertar. Ouçam esse pobre escritor, que nem vos diz diretamente; mas ouve,
ou lê se não tiver nada melhor que fazer. Se tiver, vá, veja e viva; e morra
sem esse pobre escritor, como morrem muitos sem muitos escritores.
Feliz, então, aquele que não escreve. Antes
de libertar, escrever mais te escraviza. Depende daquela madame, a Sra.
Inspiração. Dona esquiva. Bate na sua porta se quiser e se quiser foge tão
rápido quanto bateu. Aliás, tu sabes que já visitou Shakespeare e Assis; que já
deslumbrou Noé e Almodóvar; que já inflou Guevara e Hitler. Por que, em mil
anos, essa senhorita, senhora, senhorinha; por que essa beleza há de vir se
preocupar com você?
Pobre escritor. É escravo de seus
sentimentos, seus pensamentos, seus medos, suas inseguranças; as palavras são
sua carta de alforria. E tão inalcançáveis! Claro que aquela Dona Inspiração é escravocrata;
tua liberdade está nas suas mãos invisíveis, nas suas rápidas batidas. E mesmo
que liberte o escritor, é porque conhece suas vergonhas e as quer expor a quem
quiser (ou a quem não tiver coisa melhor que fazer). Esse pobre escritor é seu
próprio livro e fica sempre aberto, a risos e a lágrimas, a satisfações e a
indiferenças.
Mas a maior aflição do escritor vem daqui.
Ele não é nenhum super-herói, é gente como a gente, é você e o Fulano. O
escritor é viciado em café, em ciências humanas. O escritor tem insônia, e tem
momentos de euforia. O escritor passa na calçada de cabeça baixa ou nariz
empinado, e ninguém nota que é escritor. Não faz diferença, é só mais um
número, são só algumas palavras a mais.
E o escritor é deprimido. E o escritor pensa
demais no seu passado. E o escritor imagina demais o seu futuro. O escritor ama
demais e odeia em demasia. E o escritor é controverso.
- Vem comer, meu escritor! – vem da sala a
voz feminina, e o escritor já poetiza, complica o mundo, vomita seus amores,
até que a Dona foge.
Então não ouça esse escritor. Escreva se
quiser. Escraviza, mas liberta na maioria das vezes e a Dona Inspiração demora
tanto a aparecer que quando aparece traz consigo a felicidade de escritor, e se
a Inspiração vai embora, essa felicidade fica um pouco contigo. Escreva, se
quiser. Seus sentimentos podem tocar alguém; seus pensamentos podem encontrar
alguém; seus medos podem curar alguém; e suas inseguranças podem encorajar
alguém; porque escrever é socializar sem sair da frente da folha, não mais em
branco, sem deixar de olhar as linhas agora com as letras cursivas, sem deixar
de se fascinar com as cores dos caracteres no computador.
Não ouça esse escritor, porque esse escritor
não é o único. Esse é único, mas há outros, tantos que se pode escolher.
Afinal, Saramago talvez tenha razão. Afinal, você também talvez escreva, não?
Afinal, as cabeças baixas e os narizes empinados deixem de o ser quando encaram
uma folha de papel, uma linha de caderno, uma luz de computador.
Mas o
escritor deixa de escrever antes que José deixe de ter razão, e escrever seja
só escravizar e não libertar. Porque o escritor vai comer seu pão com ovo, com
uma Fulana que trouxe pra casa, sendo mais gente como a gente e menos escritor.
Porque o escritor não sai daqui sem dizer que o escritor é super-herói, não sai
sem colocar na boca de um Zé ou de uma Maria:
- Escrever é mais do que ser apenas humano,
querido. Escrever é ser um deus apaixonado; e um deus capaz de apaixonar.
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